O que não se conta nesse tempo



Todos os dias a gente conta. Contamos o número de doentes, de mortos, de recuperados. A gente analisa gráficos e tenta compreender se a “curva” diminuiu. Contamos as vagas nos hospitais ou a falta delas; contamos os dias que passam, quase incrédulos quando somamos todos eles. Contamos quanto tempo falta para acabar, contamos se o dinheiro vai dar. Muitos números. Muitos dias. Muita conta.  E o que não se conta? Já parou para pensar?

Não se contam as lágrimas vertidas, a dor sofrida e o tamanho da ausência de quem partiu. Não se calcula a saudade (quanta saudade!), e nem se mede a impotência que é ver quem se ama doente. Mas também não se pode analisar a quantidade de ofertas, os cansaços de amor, os sacrifícios silenciosos e nem o aumento da “curva” dos martírios.

O que não se conta nesse tempo não é o que está mudando o mundo inteiro, mas o que se está sendo construído e reconstruído nos bastidores de cada coração.  O que repercute nas manchetes dos jornais não tem nem comparação ao impacto do que acontece do lado de dentro, um lado incontável desse tempo.

Se faltam os abraços, sobram as novas manifestações de afeto. Se a presença física é limitada, redescobre-se um novo jeito de estar perto. Não é possível quantificar quantos laços foram reforçados pela prova e outros refeitos pela dor.  Quantas aproximações inesperadas e quantas permanências reveladoras!

Os filhos talvez contem, um dia, como foi a época em sua vida na qual mais estiveram com seus pais, histórias de família que foram tecidas sem que eles se “dessem conta” de sua riqueza! Os aniversários on-line, as idas ao supermercado e o processo de lavar todas as compras na volta; as aventuras gastronômicas, as inúmeras ligações telefônicas, os gestos de amor recebidos e doados.  Em meio ao caos, um caminho improvável para ressignificar a vida.

Não tem como contar também o quanto um coração pode ser alargado para ajudar o outro. Dos pequenos aos grandes atos, quanta solidariedade! E o nosso olhar, entorpecido pela dureza do sofrimento, vai sendo curado pela bondade. “Posso ir ao supermercado por você”; “Compro o seu almoço”; “Estamos doando cestas básicas”; “Doação de máscaras aqui!”. Da doação de comida, à doação do próprio respirador, da própria vida.  O sofrimento é enorme, mas há um cobertor de generosidade que alivia muito a dor, cobrindo de esperança um mundo doente. Isso é incalculável!

Se o tempo era difícil de contar, sempre insuficiente e apressado, hoje ele parece insistir em não querer ser contado, para ser vivido diferente: ora, como uma calmaria assustadora, que clareia e desanuvia, mostrando o que importa; ora, como um sopro de verdade, que vem com um desejo intrínseco de vivê-lo com mais intensidade.

Por isso, esperança! Talvez seja tempo de começar a contar o que ninguém conta. O que só você e Deus podem contar desse tempo. Alegria e dor, cruz e ressurreição.  Contar as vias no deserto que esse tempo abriu e as incontáveis histórias marcadas por um louco Amor de Deus, especialista em sempre tirar um bem de um mal.

"Mas, como diz a Escritura: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam". (I Cor 2, 9).


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